MINISTRO BARROSO DO STF DISSERTA SOBRE COMBATE A CORRUPÇÃO E REFUNDAÇÃO DO BRASIL.
Em seu texto, o ministro Barroso observa que
o Brasil tem vivido uma tempestade política, econômica e ética que mudou a
percepção da sociedade em relação a muitas questões, notadamente aquelas
associadas ao cumprimento da lei e ao combate à corrupção. Para ele, por outro
lado, podemos estar vivendo um recomeço.
"Minha crença num momento de
refundação do país não guarda relação com as recentes eleições ou este ou
aquele governo — é independente de ideologias. Baseia-se, ao contrário, nas
mudanças ocorridas na sociedade civil, que deixou de aceitar o inaceitável e
desenvolveu uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo."
Nos últimos tempos, o Brasil tem vivido
uma tempestade política, econômica e ética que mudou a percepção da sociedade
em relação a muitas questões, inclusive — e notadamente — aquelas associadas ao
cumprimento da lei e ao combate à corrupção. De acordo com a Transparência
Internacional, o Brasil ficou na 96a posição no Índice
de Percepção da Corrupção em 2017, num ranking incluindo 180 países. Para uma
das dez maiores economias do mundo, trata-se de uma posição constrangedora.
Pior: nas últimas pontuações, o Brasil vem caindo vertiginosamente. De fato, em
2006 ocupava a 79a posição; em 2015, a 69a.
É possível, porém, que o aumento da percepção da corrupção não signifique,
necessariamente, um aumento no volume dos comportamentos desviantes. Pode ser
um sinal de que o país deixou de varrer a sujeira para baixo do tapete e passou
a enfrentar com coragem o problema.
Honrado com o
convite para prefaciar esta obra, faço algumas reflexões a seguir.
ORIGENS
E CAUSAS DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
A corrupção no
Brasil tem origens e causas remotas. Aponto sumariamente três:
A primeira é o patrimonialismo,
decorrente da colonização ibérica, marcada pela má separação entre a esfera
pública e a esfera privada. Não havia distinção entre a Fazenda do rei e a
Fazenda do reino — o rei era sócio dos colonizadores —, e as obrigações
privadas e os deveres públicos se sobrepunham.
A segunda causa é
a onipresença do Estado, que exerce o controle da política e das
atividades econômicas, pela exploração direta ou por mecanismos de
financiamento a empresas privadas e de concessão de benefícios. A sociedade
torna-se dependente do Estado para quase tudo o que é importante, sejam projetos
pessoais, sociais ou empresariais. Cria-se uma cultura de paternalismo e
compadrio, acima do mérito e da virtude. O Estado e seus representantes vendem
favores e cobram lealdades.
A terceira causa é
a cultura da desigualdade. As origens aristocráticas e escravocratas
formaram uma sociedade na qual existem superiores e inferiores, os que estão
sujeitos à lei e os que se consideram acima dela. A elite dos superiores se
protege contra o alcance das leis, circunstância que incentiva condutas
erradas.
Causas imediatas
A essas origens remotas somam-se duas
causas mais imediatas.
A primeira é o sistema
político, que produz eleições excessivamente caras, com baixa
representatividade dos eleitos em razão do sistema eleitoral proporcional em
lista aberta, o que dificulta a governabilidade. Os custos altíssimos das
eleições fazem com que seu financiamento esteja por trás de boa parte dos
escândalos de corrupção; a baixa representatividade gera uma classe política
descolada da sociedade civil; e a governabilidade é comprometida por mais de
duas dezenas de partidos políticos que tornam a Presidência da República refém de
práticas fisiológicas — quando não desonestas — do Congresso.
Uma segunda causa é a impunidade. O sistema criminal brasileiro, até muito pouco
tempo atrás, mantinha uma postura de leniência em relação à criminalidade de
colarinho-branco, tanto por deficiência das leis como pela pouca disposição dos
juízes em condenar por tais crimes, considerados não violentos e não muito
graves. O sistema punitivo brasileiro, historicamente, só foi capaz de punir
gente pobre, por delitos violentos ou envolvendo drogas ilícitas. Esse quadro
começou a mudar nos últimos tempos, ainda que lentamente. Como assinalado no
artigo dos procuradores Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon, “casos criminais
contra poderosos dificilmente têm seu mérito analisado. Em geral são anulados por
tribunais ou prescrevem”.
O
QUADRO ATUAL DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
Corrupção estrutural e sistêmica: o pacto oligárquico.
É impossível não identificar as
dificuldades em superar a corrupção sistêmica como um dos pontos baixos desses
últimos trinta anos de democracia no Brasil. O fenômeno vem em processo
acumulativo de longa data e se disseminou, nos últimos tempos, em níveis
espantosos e endêmicos. Não foram falhas pontuais, individuais. Foi um fenômeno
generalizado, sistêmico e plural, que envolveu empresas estatais e privadas,
agentes públicos e privados, partidos políticos, membros do Executivo e do
Legislativo. Havia esquemas profissionais de arrecadação e distribuição de
quantias desviadas mediante superfaturamento e outros métodos. Esse se tornou o
modo natural de fazer negócios e política no país. A corrupção é fruto de um
pacto oligárquico celebrado entre boa parte da classe política, do empresariado
e da burocracia governamental para saquear o Estado brasileiro.
Um instantâneo do nosso momento atual revela
a existência de ações penais em curso ou condenações por corrupção envolvendo:
o atual presidente da República, dois de seus antecessores e um ex-candidato ao
cargo; dois ex-chefes da Casa Civil; três ex-presidentes da Câmara dos
Deputados; um ex-presidente do Senado Federal; um ex-secretário de Governo da
Presidência da República; e diversos ex-governadores de estados. Alguém poderia
supor que haja uma conspiração geral contra tudo e contra todos. O
problema com essa versão são os fatos: os áudios, os vídeos, as malas de
dinheiro, assim como as provas que saltam de cada compartimento que se abra.
A reação da sociedade: mudanças de atitude, na legislação e na jurisprudência.
Se há uma novidade no Brasil, é uma
sociedade civil que deixou de aceitar o inaceitável. A reação da cidadania
impulsionou mudanças importantes de atitude que alcançaram as instituições, a
legislação e a jurisprudência. A primeira delas foi o julgamento da Ação Penal
470, conhecida como o caso do “mensalão”, marco emblemático da rejeição social
a práticas promíscuas entre o setor privado e o poder público, historicamente
presentes na vida nacional.
O Supremo Tribunal Federal foi capaz de
interpretar esse sentimento e, num ponto fora da curva — e que veio a mudar a
curva —, decretou a condenação de mais de duas dezenas de pessoas, entre
empresários, políticos e servidores públicos, por delitos como corrupção ativa
e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão
fraudulenta de instituição financeira.
Na sequência, a magistratura, o Ministério
Público e a Polícia Federal conduziram a chamada operação Lava Jato, o mais
extenso e profundo processo de enfrentamento da corrupção na história do país —
e talvez do mundo. Utilizando técnicas de investigação modernas, processamento
de big data e colaborações premiadas, a operação desvendou um
imenso esquema de propinas, superfaturamento e desvio de recursos da Petrobras.
Em seu artigo para esta obra, o ex-juiz Sergio Moro registra que até junho de
2018 haviam sido propostas 76 ações penais contra 319 pessoas, com 134
condenados por crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa.
Em meados de 2017, já havia em torno de 140 condenações em primeiro grau de
jurisdição. A verdade é que poucos países no mundo tiveram a capacidade de
abrir suas entranhas e expor desmandos atávicos como o Brasil.
Ao longo dos anos — de forma lenta, porém
contínua —, também houve mudanças importantes na legislação destinada a
enfrentar a criminalidade de colarinho-branco, com a aprovação do agravamento
das penas pelo crime de corrupção, da lei de lavagem de dinheiro, da lei que
define organização criminosa e que aperfeiçoou a colaboração premiada e da Lei
Anticorrupção. Na mesma onda de combate a esse tipo de improbidade, sobreveio a
Lei Complementar no 135/2010, conhecida como Lei da
Ficha Limpa, que impede de concorrer a cargos eletivos quem foi condenado por
órgão colegiado por crimes ou infrações graves — uma medida importante em
favor da moralidade administrativa e da decência política. Muita gente é contra
essas inovações. Paciência. Nós não somos atrasados por acaso. Somos atrasados
porque o atraso é bem defendido.
Por fim, houve alterações ou movimentos
significativos trazidos pela jurisprudência do próprio Supremo. A mais importante
delas, sem dúvida, foi a possibilidade de execução de decisões penais
condenatórias após o julgamento em segundo grau, fechando a porta pela qual
processos criminais se eternizavam até a prescrição. Também merece destaque a
declaração de inconstitucionalidade do modelo de financiamento eleitoral por
empresas, que produziu as práticas mafiosas desveladas pela Lava Jato. Também pode ser inserida nessa tendência de
maior seriedade penal a validação das investigações conduzidas pelo Ministério
Público. Cabe destacar, ainda, a decisão que reduziu drasticamente o alcance do
foro privilegiado, limitando-o aos atos praticados no cargo e em razão de seu
exercício.
A reação às mudanças
Há uma imensa resistência contra essas
transformações por parte dos membros do pacto oligárquico e seus defensores. Na
verdade, o combate à corrupção no Brasil, embora tenha avançado muito, ainda
enfrenta três obstáculos poderosos: parte do pensamento
progressista acredita que os fins justificam os meios e que a corrupção não é
mais do que uma nota de rodapé da história. Estão errados. Ela drena os
recursos que deveriam contribuir para a distribuição de riqueza e bem-estar e
cria uma relação pervertida entre a cidadania e o Estado, bem como gera um
ambiente geral de desconfiança entre as pessoas; parte do pensamento
conservador brasileiro milita no tropicalismo equívoco de que corrupção ruim é
a dos adversários, dos que não servem aos seus interesses imediatos. E, assim,
dão suporte a elites extrativistas que nos atrasam na história, nos retêm como
um país de renda média e impedem a prosperidade para todos; e, por fim, os
próprios corruptos, que se dividem em dois grupos: os
que não querem ser punidos pelos muitos malfeitos perpetrados ao longo dos anos
e um lote pior, que é o dos que não querem se tornar honestos daqui nem para a
frente.
OS
CUSTOS DA CORRUPÇÃO
A corrupção tem custos financeiros,
sociais e morais. Não é fácil estimar as perdas monetárias com a
corrupção. Trata-se de um tipo de crime difícil de rastrear, porque subornos e
propinas não vêm a público facilmente nem são lançados na contabilidade
oficial. Nada obstante, noticiou-se que
apenas na Petrobras e demais empresas estatais investigadas na Lava Jato — isto
é, em uma única operação — os pagamentos de propinas chegaram a 20 bilhões de
reais. No balanço da empresa de 2014, publicado com atraso em 2015, como
assinalado no artigo de Sergio Moro, foram registradas perdas de 6 bilhões de
reais, equivalentes, à época, a 2 bilhões de dólares. No início de 2018, a
Petrobras fez acordo para o pagamento de cerca de 3 bilhões de dólares em Nova
York em class action movida por investidores americanos, e de
853 milhões de dólares com o Departamento de Justiça dos Estados
Unidos. Os custos sociais também são elevadíssimos. A corrupção compromete
a qualidade dos serviços públicos em áreas de grande relevância, como saúde,
educação, segurança pública, estradas, transporte urbano etc. Da mesma forma,
faz com que decisões relevantes acabem sendo tomadas com motivações e fins
errados. Nos últimos anos, no rastro dos escândalos de corrupção, o pib brasileiro
caiu mais de 20%.
O pior, todavia, é provavelmente o custo
moral, com a criação de uma cultura de desonestidade e esperteza que contamina
a sociedade e dá incentivos errados aos cidadãos. Nesse ponto há uma visão
equivocada na matéria, que pretende fazer uma distinção quando o dinheiro da
corrupção vai para o bolso do agente público ou para uma campanha política. O
problema, no entanto, é que o mais grave nesse contexto não é para onde o
dinheiro vai: é de onde ele vem, o que se faz para
obtê-lo. Não é difícil ilustrar que condutas são essas: superfaturam-se
contratos; cobram-se propinas em empréstimos públicos; vendem-se benefícios
fiscais em medidas legislativas; cobra-se pedágio de toda e qualquer pessoa que
queira fazer negócio no Brasil. Para
mudar essas práticas, não há como ser condescendente com elas.
A
CORRUPÇÃO É CRIME VIOLENTO, PRATICADO POR GENTE PERIGOSA
É um equívoco supor que a corrupção não
seja um crime violento. Corrupção mata. Mata na fila do atendimento pelo
Sistema Único de Saúde, na falta de leitos, na escassez de medicamentos. Mata
nas estradas sem manutenção adequada. A corrupção destrói vidas que não são
educadas adequadamente, em razão da ausência de escolas e de deficiências de
estruturas e equipamentos. O fato de o corrupto não ver nos olhos as vítimas
que provoca não o torna menos perigoso. A crença de que
a corrupção não é um crime grave e violento — e de que os corruptos não são
perigosos — nos trouxe até aqui, a esse cenário sombrio em que recessão,
corrupção e criminalidade elevadíssima nos atrasam e nos retêm num patamar de
renda média, sem conseguirmos furar o cerco.
O que temos é um país com uma faceta feia
e desonesta, no qual altos dirigentes ajustam propinas dentro dos palácios de
onde deveriam governar com probidade; governadores transformam a sede de
governo em centros de arrecadação e distribuição de dinheiro desviado;
parlamentares cobram vantagens indevidas para aprovar desonerações; membros de
Comissões Parlamentares de Inquérito achacam pessoas e empresas para não as
submeterem a constrangimentos e humilhações públicas, dirigentes de
instituições financeiras públicas exigem para si percentuais dos empréstimos
que liberam, dirigentes de fundos de pensão de empresas estatais fazem
investimentos ruinosos para os seus beneficiários em troca de vantagens
indevidas.
É bem de ver que a crítica que se faz, e
que é aqui endossada, não envolve punitivismo, jacobinismo ou a crença em
vingadores mascarados. Nem Robespierre, nem Savonarola: estamos aqui falando de
respeito pleno à Constituição e à legalidade penal. Porém, é preciso derrotar a
visão equivocada e difundida de que devido processo legal é o que não termina
nunca e que garantismo significa que ninguém nunca é punido
por coisa nenhuma, não importa o que tenha feito.
O
PAPEL DO DIREITO PENAL E AS CONSEQUÊNCIAS DA IMPUNIDADE
O sistema punitivo está longe de figurar
no topo da lista dos instrumentos mais importantes para realizar o ideário
constitucional. Não se muda o mundo com a exacerbação do direito penal. A
construção de um país fundado em justiça, segurança e igualdade entre todos é
mais bem servida por categorias como educação de qualidade desde
a pré-escola, para permitir que as pessoas tenham igualdade de oportunidades e
possam fazer escolhas esclarecidas na vida; distribuição adequada de
riquezas, poder e bem-estar, para que os cidadãos possam ser verdadeiramente
livres e iguais, e se sentirem integrantes de uma comunidade política que as
trata com respeito e consideração; e debate público democrático e de
qualidade, no qual a livre circulação de ideias e de opiniões permita a
busca das melhores soluções para as necessidades e angústias da coletividade.
A verdade, porém, é que no atual estágio
da condição humana o bem nem sempre consegue se impor por si próprio. A ética e
o ideal de vida boa precisam também de um impulso externo. Entre nós, no entanto, um direito penal seletivo e
absolutamente ineficiente em relação à criminalidade de colarinho-branco criou
um país de ricos delinquentes. O país da fraude em licitações, da
corrupção ativa, da corrupção passiva, do peculato, da lavagem de dinheiro
sujo. O sistema punitivo deixou de cumprir o seu papel principal: o de
funcionar como prevenção geral, com o temor da punição servindo
para inibir os comportamentos criminosos. As pessoas tomam decisões na vida com
base em incentivos e riscos. Se há incentivos para a conduta ilícita — como o
ganho fácil e farto — e não há grandes riscos de punição, a sociedade
experimenta índices elevados de criminalidade.
Por ser a corrupção um crime racional, “é
indispensável alterar a relação entre custo e benefício dessa prática, tanto
para o corruptor como para o corrupto”.
CONCLUSÃO:
UM NOVO PARADIGMA
A corrupção favorece os piores. É a
prevalência dos desonestos sobre os íntegros. Esse modelo não se sustenta
indefinidamente. Só se o mal pudesse mais do que o bem. Mas, se fosse assim,
nada valeria a pena. A maneira desassombrada como a sociedade brasileira — e
parte das suas instituições — vem enfrentando a corrupção e a impunidade,
dentro do estado de direito, produzirá, logo ali na esquina do tempo, uma
transformação cultural importante: a revalorização dos bons em
lugar dos espertos. Quem tiver talento para produzir uma inovação
relevante, ou for capaz de baixar custos de uma obra pública, será mais importante
do que quem conhece a autoridade administrativa que paga qualquer preço, desde
que receba uma vantagem por fora.
É possível — apenas possível — que a
tempestade ética, política e econômica que atingiu o Brasil nos últimos anos representem
uma dessas conjunturas críticas que permitirão a reconstrução de muitas
instituições e que ajudarão a empurrar para a margem da história as elites
extrativistas e autorreferentes que se apropriaram do Estado brasileiro.
Minha crença num momento de refundação do
país não guarda relação com as recentes eleições ou este ou aquele governo
— é independente de ideologias. Baseia-se, ao contrário, nas mudanças ocorridas
na sociedade civil, que deixou de aceitar o inaceitável e desenvolveu uma
imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo. E essa é a energia que
muda paradigmas e empurra a história. Assim seja.
Brasília, 12
de dezembro de 2018
LUÍS ROBERTO BARROSO
Ernani Serra
Pensamento:
Estamos vivendo um conto de fadas, com reis e palácios e sem reinados.
Ernani Serra